Duas mulas

Duas mulas

Iam duas mulas por uma estrada. Lado a lado trotavam. 
Uma, que trazia nos alforges batatas e legumes para o mercado, talvez por ser mais nova, adiantou-se à outra mula. 
Logo a mais velha a chamou à pedra: 
- Então que é lá isso, sua serigaita. Já não há respeito pela nobreza? Com que direito me ultrapassa a mim, que valho um milhão de vezes mais do que você? 
A mula nova, que não estava para despiques, susteve o passo e deixou-a passar à frente. Mas, por curiosidade, perguntou-lhe: 
- Porque é que vossemecê vale assim tanto mais do que eu? 
- Porque trago uma fortuna que não faz ideia. Pratas lavradas, castiçais doirados, loiças da Índia e um saco de libras em ouro. Sou uma mula rica, ao passo que você, sua pindérica, é apenas uma mula com dois sacos de batatas e umas hortaliças. 
E lá seguiu à frente, majestosa. 
A mula nova deixou-a ir. Companheiras de viagem daquele estilo dispensava. 
Apartadas pela diferença de riquezas, também, na estrada, a distância entre uma e outra era cada vez maior. 
Perderam-se de vista. 
Voltaram a encontrar-se no mercado. A mula velha, descarregada do seu tesouro, metia dó. Andavam as moscas à volta dela. Estava à venda, mas ninguém a queria. 
- Que lhe sucedeu para vir parar a esta miséria? - perguntou a mula nova, aliviada do peso das batatas. 
- Uma grande desgraça - contou a mula velha. - Depois de nos separarmos, fui assaltada por uns bandidos, que me levaram tudo o que trazia comigo e ainda me moeram de pancada. Andei aos tombos, por aí, até vir ter a esta feira de animais para abate. 
Vá lá que o dono da mula nova se tentou pela pechincha que pediam pela mula velha, e comprou-a. 
- Vamos ser colegas - disse a mula nova. - Agora o que temos é de levar para a quinta o que o nosso dono trocou pelas batatas. 
- E qual é a qualidade do carregamento? - perguntou a mula velha, que já conhecera pesos de muito preço e importância. 
- Não é carga pesada. Isso é que me interessa - respondeu a nova. 
- Mas de que qualidade? - insistiu a mais velha. 
- Estrume - respondeu a nova, muito mula, a mostrar as favolas, cheia de riso. 
- Ah, estrume? - repetiu, desolada, a mais velha. - Nunca imaginei. Mas calhou assim. É a vida. 
Isto dito a meio de um fundo suspiro. Pois. É a vida?

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